por Gizele Martins, Flavia Cândido e Clara Polycarpo – Setembro é reconhecido nacionalmente como o mês de sensibilização, conscientização e valorização da vida. O acesso à saúde e, em especial, à saúde mental se torna o foco do debate. Neste sentido, a concepção ampla da saúde e, com ela, o papel da atenção primária à saúde apontam para a importância de políticas públicas para seu acesso e democratização, reconhecendo todos os seus determinantes, tais como: moradia digna e de qualidade, educação digna e de qualidade e alimentação digna e de qualidade, por exemplo. As favelas, no entanto, constituem espaços marcados por elevados níveis de vulnerabilidade social, além de submetidos a constante violência e à desassistência estatal. São inúmeras as ausências de políticas públicas, e estas ausências interferem diretamente no cotidiano e na qualidade de vida de seus moradores e moradoras. Quando colocamos a favela e a periferia no centro do debate, é preciso considerar o conjunto de desigualdades que, historicamente, vêm sendo também aprofundadas, por exemplo, quando, para além das ausências, é também o Estado e a violência por ele promovida que impactam negativamente a vida de quem vive ou de quem tenta sobreviver nesses territórios.

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A saúde não está restrita ao paradigma da ausência de doenças ou ao combate à doença, assim como a violência não se reduz à análise do enfrentamento ao crime ou a contravenção. Sem dúvida, diante do conjunto de determinantes para uma vida plena, a negação do direito à segurança é um dos mais elementares. Conviver com constantes operações policiais e programas governamentais que visam o controle e o domínio dos territórios por meio da criminalização da pobreza e da militarização, é produzir políticas de morte em que se nega o direito à própria vida. Só nos últimos 15 dias, as favelas do Conjunto de Favelas da Maré, localizadas na Zona Norte do Rio de Janeiro, com aproximadamente 140 mil moradores, têm sofrido com operações policiais consecutivas.

Diante deste cenário, um jovem pai de família que teve a sua casa invadida na favela Baixa do Sapateiro, uma das favelas da Maré, neste período, desabafou: “Parece que nascemos marcados!“. Depois de chegar do trabalho, ver sua casa arrombada e seus pertences roubados, o homem foi também informado que outros dois jovens favelados, rendidos, foram ali executados. Sem casa, sem proteção, com medo. E marcado. A frase “Parece que nascemos marcados” nos faz pensar no sentido da vida quando uma cidade, pretensiosamente democrática, pratica de maneira constante um apartheid televisionado e assistido por toda a população. Do outro lado de uma avenida, sem tiros e sem execuções, porém, não ouvimos o asfalto gritar. Quem grita é sempre o alvo.

Afinal, quem tem direito à saúde nas favelas? Nesta campanha de Setembro Amarelo, às vésperas de uma importante eleição municipal, os governos, de maneira integrada, deveriam se comprometer com medidas para melhoria da oferta e do acesso a serviços psicossociais a esta população que sofre com criminalização e racismo cotidianamente. Por exemplo, dos três Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) disponíveis para moradores da região da Maré, somente um, o da Praia de Ramos, está localizado dentro de uma das 16 favelas da Maré. No entanto, a situação destes equipamentos é precária. Os próprios CAPS demandam infraestrutura, pois atendem moradores sem condições adequadas, sem insumos e sem a equipe suficiente para a realização da política de saúde mental. Com cortes constantes de orçamento e recursos humanos na rede pública de saúde, o cuidado com os casos leves e a prevenção de agravamento da saúde mental não tem espaço na atual política pública. Faltam ambulatórios, centros de convivência, ou mesmo o desenvolvimento de atividades esportivas e artísticas para garantir a promoção da saúde mental no território. Ao mesmo tempo em que, em mais um dia de operações policiais, todas as clínicas da família se mantêm fechadas, em um cerco formado para controlar e negar direitos a esta população

pesquisa “Construindo Pontes” (2021) revelou que pessoas expostas à violência armada, como os moradores de favelas, são mais vulneráveis ao sofrimento mental. Alguns dos transtornos mentais que mais atingem são: estresse pós-traumático, ansiedade, depressão, fobias e tentativas de suicídio. A partir da produção de dados feita pelo próprio território, a publicação “Análises: Saúde Mental nas favelas da Maré” (2023), traz as principais necessidades no campo da saúde mental, são elas: a Ampliação do Núcleo de Apoio à Saúde da Família; Estabelecimento de espaços de cuidado; Construção de Centros de Atenção Psicossocial na Maré, em proporção a sua concentração populacional; Construção de Centros de Convivência e Cultura no âmbito da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), entre outros.

A pesquisa “Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico” (Vigitel), publicada pelo Brasil de Fato, mostra que só no ano de 2021, 11,3% dos brasileiros relataram ter recebido diagnóstico de depressão. Para as pessoas que vivem em locais mais pobres, este diagnóstico pode nunca chegar devido ao tabu em torno do assunto e a falta de acesso a atendimentos e tratamentos.

Diante das ausências de direitos e dos constantes ataques e sofrimentos que a população favelada presencia em seus territórios, cada vez mais, movimentos de favelas e movimentos de mães e familiares da violência policial se auto organizam buscando fortalecimento e atendimento de direitos. No Rio de Janeiro, foi criado o Núcleo de Atenção Psicossocial a Pessoas Afetadas pela Violência do Estado (NAPAVE). Este é um projeto desenvolvido por psicoterapeutas e assistentes sociais que tem como objetivo oferecer espaços coletivos de acolhimento e atenção psicossocial às vítimas de violência de Estado (sobretudo negros e residentes em favelas), bem como apoiar a potencialização de suas redes nas lutas por memória, verdade, justiça e reparação. Além disso, durante e após a pandemia da Covid-19, outros grupos foram organizados pelos próprios moradores de favelas e periferias no Rio e em todo o país.

O grupo de trabalho Saúde Mental e Integral, vinculado ao projeto Tecendo Diálogos, atua na articulação das pautas mobilizadas pelo Fórum de Pré-Vestibulares Populares do Rio de Janeiro (FPVP-RJ) e Fórum Favela Universidade (FFU). Compreende a saúde de maneira integrada às condições de vida, segurança pública, território, moradia, empregabilidade, racismo, entre outros indicadores sociais. Busca realizar ações que fomentem a promoção da saúde através da tomada de consciência, do acesso e da garantia de direitos, da atuação coletiva e da organização popular, visando a incidência em políticas públicas, projetos e programas de saúde, educação e cultura voltados para as juventudes faveladas.

Como exemplo do papel dos moradores e dos movimentos sociais na promoção da saúde, Thais Cavalcanti, na sua série publicada no Dicionário de Favelas Marielle Franco, revela como um grupo da Maré se auto organizou durante a pandemia da Covid-19: o Garotas da Maré criou o Mentes da Maré e ofereceu atendimento psicológico online para a população. “Por serem doenças silenciosas, tem muitos estigmas e preconceito das pessoas. O projeto atendeu não só casos de luto pela Covid-19, mas casos de psiquiatria, encaminhados para o CAPS.”, afirma. Mais do que um serviço de escuta, o objetivo era conectar psicólogos aos pacientes que precisavam de um tratamento contínuo e acessível. E deu certo: mais de 100 pessoas da Maré receberam apoio psicológico online. Alguns pacientes continuam o tratamento até hoje. É neste sentido que apontar a urgência do atendimento básico à saúde e da prevenção por meio de políticas efetivas e orientadas para populações em vulnerabilidade deve ser a principal campanha, considerando o que já tem sido pauta de diversos movimentos sociais.

Um Olhar e Uma Proposta Para As Favelas e Periferias

saúde mental nas favelas e periferias é um desafio que exige uma abordagem integrada e multidisciplinar, considerando as particularidades desses territórios e a sobreposição de vulnerabilidades enfrentadas pela população negra. A violência policial, o desemprego, a remoção forçada e a falta de investimento em políticas públicas específicas criam um ambiente onde o sofrimento psicológico é a regra, não a exceção.

Com a chegada do Setembro Amarelo, é imprescindível que a sociedade brasileira e, principalmente, as autoridades, voltem seus olhos para a prevenção do suicídio nas favelas e periferias, onde as ações são praticamente inexistentes. Para enfrentar essa realidade, é necessário que o Estado brasileiro reconheça a urgência da questão e que ações concretas sejam tomadas para garantir o direito à saúde mental para todos, independentemente de onde vivem. A coleta sistemática de dados, o fortalecimento de políticas públicas e o apoio aos coletivos que já atuam nessas áreas são passos essenciais para reverter o quadro atual e promover a saúde mental de maneira efetiva e inclusiva. A maior parte das informações disponíveis sobre a saúde mental nas favelas e periferias é fornecida por ONGs e coletivos que atuam diretamente nesses territórios, evidenciando a ausência de uma ação governamental robusta e contínua.

Além disso, o olhar também deve considerar o combate às desigualdades e às discriminações através da luta antimanicomial. É pensando na importância de atender, de maneira minimamente eficaz, os diferentes públicos, que, para as eleições municipais de 2024, foi criada uma plataforma eleitoral antimanicomial do estado do Rio de Janeiro em diálogo com a Frente Parlamentar Antimanicomial na ALERJ, em especial com temas oriundos do relatório final da 5ª Conferência Nacional de Saúde Mental (2023).

Um dos principais objetivos é a defesa, de forma permanente e enérgica, da política de reforma psiquiátrica antimanicomial e a ampliação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) integrada ao Sistema Único de Saúde (SUS), como política do Estado brasileiro para o campo da saúde mental. Considerando, em especial, o fortalecimento das comissões permanentes de Direitos Humanos junto à Câmara Municipal, aos conselhos de saúde, assistência social, educação, direitos das crianças e adolescentes, conselhos tutelares, pessoas com deficiências, visando a investigação de violações dos direitos das pessoas com sofrimento mental, com problemas decorrentes do uso de drogas, em situação de rua e em comunidades afetadas pela violência do tráfico, das milícias e da violência policial.

O Impacto das Operações Policiais e Remoções Forçadas

As operações policiais nas favelas são eventos frequentes e altamente traumáticos, deixando marcas profundas na saúde mental dos moradores. Segundo o Observatório de Favelas, mais de 70% dos moradores do Conjunto de Favelas da Maré relatam transtornos mentais como ansiedade e estresse pós-traumático após uma operação policial, especialmente no contexto pós-pandêmico. Mesmo diante de situações de extrema violência, como tiroteios, os moradores são obrigados a fingir uma normalidade para seguir suas rotinas diárias, o que inclui levar os filhos à escola ou ir ao trabalho, tudo isso menos de um dia após os eventos traumáticos.

Estudo da Agência Brasil realizado em 2023 revelou que o impacto de tiroteios frequentes nas favelas do Rio de Janeiro é devastador para a saúde mental dos moradores. A pesquisa destacou que a exposição contínua à violência armada está associada a um aumento significativo nos casos de estresse pós-traumático, depressão e outros transtornos mentais. A situação é ainda mais crítica para a população negra, que além de sofrer com o racismo estrutural, enfrenta a violência racializada das operações policiais.

Desemprego e Desamparo: A Crise Econômica e sua Relação com a Saúde Mental

A crise econômica, exacerbada pela pandemia de COVID-19, trouxe à tona uma realidade ainda mais dura para as favelas e periferias. O desemprego em massa não apenas aumenta a insegurança financeira, mas também aprofunda o sentimento de desesperança e desamparo, contribuindo para o surgimento ou agravamento de transtornos mentais.

A falta de emprego, aliada à precariedade dos serviços de saúde mental disponíveis, deixa os moradores das favelas sem alternativas eficazes para lidar com seu sofrimento. Segundo dados do estudo publicado na Visão do Corre pela Terra, a saúde mental dos moradores das favelas do Rio de Janeiro foi gravemente impactada pela crise econômica e as consequências da pandemia. A pesquisa revelou que uma grande parte da população das favelas relatou um aumento significativo de sintomas de depressão, ansiedade e outros transtornos mentais durante esse período.

Falta de Investimento em Políticas Públicas

A negligência em investir em políticas públicas eficazes para a saúde mental nas favelas e periferias reflete um processo contínuo de marginalização dessas áreas. Em vez de uma atuação consistente do Estado, o levantamento de informações e o suporte psicológico nessas regiões são majoritariamente conduzidos por ONGs e coletivos, como o Projeto Saúde Mental na Periferia, que busca preencher as lacunas deixadas pela falta de ação governamental. A ausência de uma coleta sistemática de dados por parte do governo agrava ainda mais o problema, dificultando a criação de políticas públicas preventivas que realmente atendam às necessidades dos moradores e perpetuando um ciclo de sofrimento e abandono.

pesquisa “Construindo Pontes”, realizada em 2021 pelo Observatório de Favelas, revelou que 80% dos moradores entrevistados apresentavam sintomas de ansiedade, e 64% relataram sintomas de depressão. Esses números sublinham a urgência de intervenções direcionadas e eficazes, além de evidenciarem a falta de suporte governamental, que deixa muitas dessas condições sem tratamento adequado.

Enfrentando o Desafio: A Importância do Coletivo

Em meio à ausência de políticas públicas robustas, coletivos e ONGs têm se destacado como as principais fontes de apoio psicológico para os moradores das favelas e periferias. Iniciativas como a campanha Saúde Mental na Periferia buscam mitigar os impactos da crise de saúde mental nesses territórios, oferecendo atendimento psicológico, campanhas de conscientização e apoio emocional, especialmente entre adolescentes, que são um dos grupos mais vulneráveis.

Um estudo apresentado na Conferência de Epidemiologia de 2021 mostrou que adolescentes que vivem em periferias experimentam uma série de desafios que afetam diretamente sua saúde mental, incluindo violência, discriminação e falta de recursos. Esses fatores contribuem para altos índices de transtornos mentais entre os jovens, que muitas vezes não têm acesso ao apoio necessário para lidar com essas questões.

Essas iniciativas são fundamentais para garantir que os moradores tenham acesso a algum nível de cuidado e suporte, mesmo diante da omissão do Estado. Contudo, é essencial que essas ações sejam acompanhadas por uma mudança estrutural na forma como o Estado brasileiro lida com a saúde mental nas favelas e periferias.


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